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A COISA

Vão Gogo (Millôr Fernandes)

            Eu via a coisa, quando o dia nascia, nascia o ano. A festa mal começara, era pura meia-noite, de modo que nem acusar de bêbado vocês podem. Ela surgiu, aos poucos, entre um copo e outro, foi crescendo foi crescendo, tomando vulto, adquirindo forma. A princípio, achei-a engraçada, mas pouco a pouco, percebi seu ar teratológico, sua efígie de monstro. Não fez nada, sumiu algumas horas depois. Mas era horrenda, como vocês verão por esta descrição:
            Tinha cabelo de relógio
              testa de ferro,
                cabeça de ponte, 
                   orelhas de livro,
                     ouvidos de mercador.
                      Um olho d’água,
                         outro da rua,
                           pupilas do Sr. Reitor,
                             nariz de cera,
                               dente de coelho,
                                 língua de trapo,
                                  barba de milho
                                    e costeletas de porco.
                                      Tinha um seio da pátria,
                                        outro da sociedade,
                                          braço do mar,
                                            cotovelos de estrada,
                                              uma mão de direção,
                                                outra mão boba,
                                                  palmas de coqueiros,
                                                    dois dedos de prosa,
                                                       e unha de fome.
                                                         Tinha tronco de árvore,
                                                           corpo de delito,
                                                             juntas comerciais,
                                                               barriga de revisão,
                                                                  bacia do Amazonas,
                                                                    costa da África,
                                                                      pernas de mesa,
                                                                        canela em pó,
                                                                          um pé cúbico,
                                                                            outro pé de vento,
                                                                              e plantas de arquitetura.

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AI, GRAMÁTICA. AI, VIDA.
                                                                                                                      Moacyr Scliar


            INFÂNCIA: A PERMANENTE EXCLAMAÇÃO
            Nasceu! É um menino! Que grande! E como chora! Claro, quem não chora não mama.
            Me dá! É meu!
            Ovo! Uva! Ivo viu o ovo! Ivo viu a uva! O ovo viu a uva!
            Olha como o vovô está quietinho, mamãe!
            Ele não se mexe, mamãe! Ele nem fala, mamãe!
            Ama com fé e orgulho a terra em que nasceste! Criança – Não verás nenhum país como este!
            Dá agora! Dá agora, se tu és homem! Dá agora, quero ver!



            A PUBERDADE: A TRAVESSIA (OU O TRAVESSÃO)
            Papai, eu queria – não, não é que eu queria – bom, tu sabes, eu precisava – bom, não é bem isto – bom, eu pensei – bom, deixa, agora não posso falar, amanhã quem sabe eu – bom - O que eu acho, Jorge – não sei se tu também achas – o que eu acho – porque a gente sempre acha muitas coisas – o que eu acho – não sei – tu és irmão dela – mas o que eu estive pensando – pode ser bobagem – mas será que não é de a gente falar – não, de eu falar com a Alice - .
            - Alice tu sabes – tu me conheces – a gente se dá – a gente conversa – tudo isto Alice – tanto tempo – eu queria te dizer Alice – é difícil – a gente – eu nem sei falar direito.



            JUVENTUDE - A INTERROGAÇÃO
            Mas quem é que eu sou afinal? O que é que eu quero? E o que vai ser de mim? E Deus, existe? E Deus cuida da gente? E o anjo da guarda, existe? E o diabo? E porque é que a gente se sente tão mal?
            E o que é isto que me saiu aqui, Jorge? Tu achas que isto é doença pegada, Jorge? Mas ela não era limpinha? Ai, Jorge, será que isso pega? Tu não achas que eu não deveria chegar perto da Alice? Quem sabe eu vou no médico, Jorge? Será que ele não vai cobrar muito caro?
            Mas por que é que tem pobres e ricos? Por que é que uns têm tudo e outros não têm nada? Por que é que uns têm auto e outros andam a pé? Por que é que uns vão viajar e outros ficam trabalhando?
            AS PAUSAS RECEOSAS (RECEOSAS, VÍRGULA, CAUTELOSAS) DO JOVEM ADULTO
            Estamos, meus colegas, todos nós, hoje, aqui, nesta festa de formatura, nesta festa, que, meus colegas, é não só nossa, colegas, mas também, colegas, de nossos pais, de nossos irmãos, de nossas noivas, enfim, penosas embora, mas confiantes sempre, nos acompanharam, estamos colegas, cônscios de nosso dever, para com a família, para com a comunidade, para com esta faculdade, tão jovem, tão batalhadora, mas ao meso tempo tão, colegas, tão.
            É claro, Jorge, eu quero casar com Alice, é claro, aliás, entendo tua preocupação, ela é tua irmã, vocês viveram sempre juntos, aliás, nós três, sempre juntos, mas Jorge, quero que compreendas.
            Lógico senhor diretor, o senhor naturalmente, tem toda a razão, senhor diretor, estou perfeitamente, mas perfeitamente, de acordo, quero que o senhor, senhor diretor, me compreenda, o Jorge, naturalmente, é meu cunhado, mas senhor diretor, dada a atual situação, que, todos sabemos, é de, embora passageira, severa retração, não vejo por que, naturalmente com toda a diplomacia, não dispensar os serviços dele, já que, não é.
            Ora, caros companheiros de clube, todos aqui conhecem, certamente, minha posição, que não é de hoje, mas é de sempre, da infância, até, eu diria, todos conhecem, repito, minha posição, que é bem clara, em relação a certos problemas sociais, pois eu sempre tenho dito, que se pode pedir, se pode reivindicar, se pode, até exigir, mas, sempre, dentro dos limites do razoável, do senso comum, sem radicalismo, sem paixões, porque afinal,


          O HOMEM MADURO. NO PONTO.
          Uma cambada de ladrões. Têm de matar.
          Matar. Pena de morte.
          O Jorge também. Cunhado também. Tem de matar. Esquadrão da morte. E ponto final.
          No meu filho mando eu. E filho meu estuda o que eu quero. Sai com quem eu quero. Lê o que eu quero. Freqüenta os clubes que eu mando.
          Tu ouviste bem, Alice. Não quero discutir mais este assunto. E ponto final.
          Chiou, boto pra rua. Não tem conversa. É pão pão queijo queijo. É lê com lê crê com crê. Cada macaco no seu galho. Na minha firma mando eu. No clube que presido mando eu. E na minha casa mando eu. E ponto final.


            (UM PARÊNTESE)
            (Está bem, Luana, eu pago, só não faz escândalo)


            O FINAL... RETICENTE...
            Sim, o tempo passou... E eu estou feliz... Foi uma vida bem vivida, esta... Aprendi tanta coisa... Mas das coisas que aprendi... A que mais me dá alegria... É que hoje eu sei tudo... Sobre pontuação...


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Álvaro

A mãe de Álvaro tinha uma hortênsia entre a rua e a casa. A hortênsia tinha pétalas rosadas por causa dos metais oxidados em suas raízes. A mãe de Álvaro havia explicado à tia de Álvaro, a tia de Álvaro havia explicado à filha o róseo segredo da flor: Enterre metais nas raízes. Ferro e chumbo, latas, o que for. A oxidação dos metais sobe pela seiva e tinge as pétalas.
Álvaro tinha dezenove anos e um sonho. Ia matricular-se na faculdade de Medicina. Álvaro queria ser pediatra. Porque queria ser pediatra, Álvaro ia matricular-se na faculdade. Porque ia matricular-se, Álvaro colocou uma calça bonita, fez a barba. Disse ao espelho: Vou ser o melhor médico do mundo. Para ser o melhor médico do mundo, ele precisava atravessar a rua, tomar o ônibus do outro lado, descer na frente da universidade.
Álvaro atravessou a rua. Uma bala atravessou-o. A bala atravessou seu alvo e o alvo sonho de Álvaro. A bala foi parar na raiz da hortênsia entre a rua e a casa. Álvaro quedou-se na rubra rua.
A bala seguiu sua trajetória. Álvaro não.


MORENNO, Pablo. Por que os homens não voam?


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CARTA SINISTRA


“Queridos papai e mamãe!

           Faz agora três meses que eu estou na faculdade. Atrasei-me muito para escrever-lhes, e sinto muito por despontá-los. Mas agora vou pô-los a par de tudo. Antes de continuar, por favor, sentem-se. Não continuem a leitura antes de sentar, OK?
            Agora estou bem. A fratura e o traumatismo craniano que eu tive ao pular da janela de meu quarto em chamas, logo depois da minha chegada, estão praticamente curados. Passei só duas semanas no hospital, e minha vista está quase normal. As enxaquecas horríveis só aparecem uma vez por semana. Felizmente, a atendente da lavanderia que fica em frente viu tudo. Foi ela que avisou os bombeiros e chamou a ambulância. Ela também foi me ver no hospital, e como eu não tinha aonde ir, pois meu apartamento virou cinzas, ela teve a gentileza de me convidar para morar na casa dela.
         Na verdade é um quarto no subsolo, mas é muito agradável. Com o dobro da minha idade, é uma mulher adorável, e nós estamos perdidamente apaixonados. Queremos nos casar. Não decidimos ainda a data, mas será antes da gravidez dela ficar muito visível.
           É, pais queridos, serei papai logo. Sei como vocês anseiam ser avós, e tenho certeza de que vocês acolherão o bebê com todo o amor e carinho que vocês me deram quando eu era pequeno. A única coisa que está atrasando nossa união é essa pequena infecção que minha noiva pegou, que nos impede de fazer os testes pré-nupciais. Eu também, por bobagem, acabei pegando a doença, mas ela vai desaparecer logo com as injeções de penicilina que estou tomando diariamente. Sei que vocês a acolherão de braços abertos em nossa família. Ela é muito amável, e, mesmo não tendo estudado, tem muita ambição.
         Como ela tem mais ou menos a idade de vocês, sei que se darão muito bem e que se divertirão muito. Os pais dela também são pessoas muito legais: parece que o pai dela é um mercenário famoso no bairro onde mora.
       Agora que vocês sabem de tudo, é preciso que eu lhes diga que não ouve incêndio nenhum no apartamento. Não tive traumatismo nem fratura no crânio, não fui ao hospital, não estou noivo, não tenho sífilis e não há mulher alguma em minha vida. A questão é que eu tirei zero em Física, dois em Matemática e um em Biologia e quis relativizar as coisas.” 

                                                                                                                           Autor desconhecido

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